"O mundo não havia parado só porque não estávamos mais nele; longe disso. Noite após noite, corpos diminutos tombavam ao chão na nossa tela de TV; pessoas negras, pessoas jovens, pessoas vietnamitas, pessoas pobres. Algumas, mortas; outras, apenas temporariamente arrebentadas. Sempre havia mais gente para substituir os que caíam e para somar-se a eles na noite seguinte.
Depois veio a época em que pessoas que conhecíamos - ainda que não pessoalmente - começaram a tombar. Martin Luther King, Robert Kennedy. Seria isso mais alarmante? Lisa alegava que era natural. - Eles tem que matá-los - explicou. - Caso contrário, a coisa nunca vai se acalmar.
Mas aparentemente não ia se acalmar. As pessoas estavam fazendo o tipo de coisa que nós fantasiávamos fazer: ocupavam as universidades e suspendiam as aulas; faziam abrigos com caixas de papelão e, com elas, obstruíam o caminho; mostravam a língua para a polícia.
Torcíamos por elas - por aquelas pessoinhas na nossa tela de TV, pessoas que iam diminuindo de tamanho à medida que seu número aumentava até se transformarem em uma massa de pontinhos, ocupando as universidades e mostrando as lingüinhas. Achávamos que algum dia elas nos "libertariam", a nós também. "Ferro neles", gritávamos, para incentivá-las.
Fantasias não tem repercussão. Ali no nosso hospital caro e bem equipado, confinadas com nossa raiva e rebeldia, estávamos a salvo. Era fácil dizer "Ferro neles!" O pior que podia nos acontecer era uma tarde na solitária. Geralmente, tudo o que provocávamos era um sorriso, um sacudir de cabeça, uma anotação em nossa ficha: "Identificação com o movimento de protesto". Os outros eram premiados com cabeças partidas, olhos roxos, chutes nos rins... e depois, eram encarcerados com sua raiva e rebeldia.
E assim a coisa foi indo, meses e meses de batalhas, tumultos e passeatas. Foram tempos de calmaria para a equipe do hospital. A gente não "atuava"; estavam atuando por nós lá fora.
Além dessa calma, vivíamos uma expectativa. O mundo ia virar pelo avesso, os mansos iam herdar a terra ou, para ser mais precisa, arrancá-la dos fortes; e nós, as mais mansas e fracas, receberíamos em vasta herança tudo o que nos havia sido negado.
mas não foi o que aconteceu. Nem para nós, nem para qualquer daqueles que reivindicavam a herança.
Ao ver Bobby Seale amarrado e amordaçado num tribunal de Chicago, compreendemos que o mundo não ia mudar. Seale estava acorrentado, como um escravo.
Cynthia ficou particularmente transtornada.
- É isso que fazem comigo! - gritou.
De fato, para a aplicação de eletrochoques, eles amarravam a pessoa e colocavam alguma coisa em sua boca, para impedir que ela mordesse a língua durante as convulsões.
Lisa também se enfureceu, mas por outro motivo.
- Será que você não percebe a diferença? - rosnou para Cynthia. - Se ele precisa ser amordaçado, é porque eles têm medo de que as pessoas acreditam no que ele diz.
Olhamos para ele, ali na tela de TV, um homem pequenino, escuro e acorrentado, mas que tinha algo que sempre nos faltaria: credibilidade."
Este é o capítulo "Mil novecentos e sessenta e oito", do livro Moça, Interrompida, de Susanna Kaysen. Aquele que deu origem ao filme Garota, Interrompida, com Angelina Jolie, Winona Ryder e Britanny Murphy. Deve ter alguma outra atriz conhecida, mas eu não lembro.
Eu gostei muito desse capítulo. Esse e "Meu diagnóstico" são os melhores.
Até mais.
Mais uma tentativa de volta.
Há 10 anos
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